POR QUE POESIA NEGRA?
Sim. Por que não: só poesia brasileira? O que diferencia a nossa
escritura da de outros escritores brasileiros? Tudo que um poeta branco fala em
sua poesia como tema, também nos interessa. Toda a dor do mundo, todas as
pedras nos caminhos, alegrias todas, toda tristeza, todas as escolas e formas
poéticas, nos interessam. Portanto, somos iguais nas formas do fazer poético; mas,
é aí que a porca torce o rabo: e o conteúdo dessa poesia? Como falarmos de nós,
de nossa gente, de nossa vida deslocada do mundo? Na mesma distância com
que o escritor branco fala de nós? Aquela imagem oficial de nossa mansidão ante a
opressão, ante a escravidão, ainda permanece nos livros, e nos corações e
mentes de todos nós. . A falsa mea culpa de todos. Minha máxima culpa. A nossa
literatura não é um ato de contrição. Ela repudia essa nossa imagem indolente
perpetrada pelo aparato canônico e suas certezas étnicas brancas. Por isso a
nossa poesia se torna um divisor de águas. As águas turvas do cânone – da qual
todos nós bebemos, pois é necessário; senão como dizer que ela é amarga, é um
fel que apodrece a nossa alma? E a nossa alma vive numa noite de incógnita, de
exclusão diante do dia, de estranheza, de estrangeirice. Essa noite de
incógnita, é diferente do sentido comum da palavra “noite”. Há um mergulho ao
passado que nos ronda à todos, é uma procura de si no meio das tormentas
sociais . Há noites e noites. Noites de dor. Históricas, pessoais, íntimas, mais
étnica, pois essa “dor” negra vivendo invisível, e de repente sendo dita aos
quatros ventos do mundo; torna-se
estranha diante do outro, quando ela adentra seus corações e mentes, onde era
só referência livresca que mascarava a nossa realidade, a nossa humanidade.
Máscara alimentada pela alienação histórica em nossa sociedade tão múltipla,
tão misturada etnicamente.
Os poetas negros brasileiros contemporâneos conscientes das
suas ações sabem que o caminho pouco mudou de Luiz Gama para cá. Se ele usou a
ironia e o sarcasmo, nós somos mais incisivos, mais diretos, sem perder a
poesia, sem se perder nas palavras de ordem.
Fazemos essa literatura “cavando sempre no fundo” ,como bem
cantou Oswaldo de Camargo em seu poema “ANTIGAMENTE”, que está publicado em seu
livro O ESTRANHO:
Como quem quer cantar,
mas não canta,
como quem quer falar,
mas se cala,
eu venho fazendo escala
no porto de muita
mágoa.
Antigamente eu morria,
antigamente eu amava,
antigamente eu sabia
qual e o chão que
resvala
se o peso da gente
pesa.
Hoje que sou homem
leve,
sem dinheiro sem
altura,
e tenho a boca
entreaberta,
olhando o incêndio do
mundo,
vejo a certeza mais
certa:
eu estou cavando no
fundo!
No fundo da ventania,
no fundo da tempestade,
no fundo do ao dormido,
no fundo de uma metade,
no fundo do desamor,
no fundo da noite
longa,
meu bolso profundo
abriga
o corpo de muita
sombra!
Como quem quer cantar,
mas não canta,
como quem quer falar,
mas se cala,
eu venho fazendo escala
no porto de muita
mágoa.
Tentei viajar-me longe,
sem vã bagagem, sem
mala,
ficou-me junto do rosto
a parede de minha sala:
borrões de sombras
antigas,
o relembrar pegajoso,
o meu sofrer de mim
mesmo,
e as vestes de umas
cantigas.
Antigamente eu morria,
antigamente eu amava,
antigamente eu sabia
qual é o chão que
resvala
se o peso da gente
pesa.
Hoje que sou homem
leve,
sem dinheiro, sem
altura,
e tenho a boca
entreaberta,
olhando incêndio do
mundo,
vejo a certeza mais
certa:
eu cavo sempre no
fundo!
Colocando-me como um
tataraneto de escravizados, eu, Abelardo Rodrigues, me vejo posto em um mundo
hostil, social e culturalmente repressor
da minha identidade, alienado duplamente. Enquanto aquele que desconhece a sua
verdadeira história, que vive iludido de que é tão igual, quanto outros
brasileiros. Quem sabe de mim? O que eu penso, o que eu faço de bom ou ruim? Quando
escrevem sobre mim, sobre a minha gente, como nós somos revelados nessa literatura?
Por isso, a busca de palavras que sejam um novo espelho da
minha imagem, real, verdadeira, com todos os defeitos, reencontro comigo mesmo
e, por que não?, com o outro. Pois agora eu sou o agente da minha fala. Direi
coisas escondidas nunca antes ditas, como neste poema da página 62 do meu livro
Memória da Noite revisitada e outros poemas:
“OLHOS
O meu fugir medroso
dos teus olhos
é, ainda,
um deslize colonial
nos cantos do meu ser
nascituro
O mar de dor
e a espumas flutuantes
do meu eu
são
um navio de rapina
perene
preso em minhas retinas
Eu sou este ser
que grita antigos
cantos
de acordar ancestrais
esqueletos
marulhados no turbilhão
das velhas palavras de
ordem
coaguladas em minhas
costas”
A Poesia Negra Brasileira se faz por vários caminhos. Mas a base é uma só. Não é um samba
de crioulo doido. Nem um lamentar a vida que segue como um eterno 14 de maio.
Eu me demonstro contra o estabelecido. A imagem veiculada e os valores
colocados sobre mim são o que o outro aprendeu nos livros. E tirar suas
vantagens por eu pouco contestá-lo. Daí a surpresa, o choque, quando ao ler
nossa poesia um outro mundo lhe é atirado. Como neste outro poema da página 63
O PORÉM
Ninguém mais se
levantou
naquele porém
fulminante
do dizer não
ao espelho senhorial
Corpos desmemoriados
contorceram-se
para verem um
rosto-cabeça
que caminhava no fiar
de um novo tempo
E com seu grito acordou
nossas mentes
adormecidas
lançando palavras de
escárnio
aos velhos livros
nos quais aprendemos
o beabá da servidão.
O despir-se não é gratuito. Poetas são assim. A novidade é
que eu, negro em todas as matizes desse Brasil plural; me ponho nu, por mim
mesmo, contra a velha imagem do não-ser, de inexistência humana que campeia
pelos livros e mentes desse país. Eu falo por mim e pelos meus. Que muitos não
querem nem saber, não estão nem aí. Não ouvem e não fazem desse discurso de
consciência, pretexto e necessidade de mudança de vida e de ações contra o
comodismo. O espectro desse espelho de mansidão é extenso, por isso voltemos a
falar da poesia.
Esses poetas, ou essa poesia, como a prosa procuram
questionar o status quo. Que está insidiosamente incrustado na cultura oficial,
em seus valores de mobilidade. Somos desconhecidos, não nos engolem, claro, já que nós somos parte
dos contestadores desse longo baile fiscal: essa literatura de uma elite para si
mesma, e para nos educar no silêncio, achando que nós estamos representados por
eles em qualquer lugar do mundo. O biombo-carapuça que desconstruímos a cada poema ou a cada texto em prosa, cabe perfeitamente
nessa cultura que nos exclui como fazedores de uma escrita que vai contra a
corrente. Cabe como contestação e conscientização. Um mundo desconhecido que
mostramos e, com ele posto fora do
espelho da mentira e da estranheza; o nosso país terá, realmente, valores
culturais menos brancos, mais verdadeiros. E não teremos aquela realidade
parcial de um Brasil mostrado em Frankfurt.
E para terminar um outro poema que não faz mal a ninguém:
LEITURAS INFANTIS
Branco o livro,
sem a presença
de pretas palavras
é
uma dor latejante
em mim.
Quando suas palavras
explodem
em
intocáveis ritos
brancos
nos livros didáticos
é um choque
em nossa alma
uma
descarga
elétrica
em nossa pele-criança
um raio que nos parte
ao meio
um vômito
regurgitado para
a vida inteira:
Branco,
o livro
Abelardo Rodrigues.